Fargo não é, assim, uma narrativa comum, que só nos passa determinados acontecimentos que se ligam entre si - ela é uma narrativa simbólica, no qual suas histórias parecem sempre desenvolver significados, mais do que simples histórias contadas. E o mais curioso é que os que nos transmitem mais significados, e que parecem mais conscientes de sua vida e suas ações, são justamente seus vilões, o que nos dá um contraste muito grande do que geralmente esperamos de um vilão de uma série. Fargo é assim uma crítica de nossa forma maniqueísta de representar o mundo, seja só em nossas cabeças ou seja na própria televisão. Seus vilões e protagonistas não contam uma história moral, sobre bem e mal - é uma história sobre o poder e nossa relação com ele. E no fim das contas, todos temos alguma relação com o poder.
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Malvo e Vargas, vilões da primeira e última temporada |
Não que seus vilões sejam um exemplo para se seguir a vida. Mas ficou claro, após assistir as três temporadas, que Fargo atua justamente como um questionamento de nossos ideais, e isso se dá principalmente a partir das figuras de seus vilões. São personagens conflituosos, que nos chocam com a perspectiva filosófica que nos passam de suas vidas. Sim, Malvo e Vargas possuem uma filosofia clara - para eles tudo é relação de poder, e suas vidas consiste no esforço em expandir o quanto puder suas próprias esferas de poder. Nada além disso.
É uma forma fria e violenta de se enxergar o mundo, onde valores como o da empatia, e sentimentos como o amor, não existem - o choque desses personagens está não apenas em suas ações ou caráter, mas principalmente nessas perspectivas de vida. Malvo deixa isso muito claro ao perguntar, em forma de enigma, por que enxergamos mais tons de verde do que de qualquer outra cor. E a resposta, como dito por Molly, é porque, quando vivíamos na selva, precisávamos ver esses tons de verde com mais precisão, afim de que pudéssemos notar o inimigo predador em meio à selva. Ora, para Malvo nunca saímos da selva - para ele o mundo divide-se entre presa e predador. Nessa perspectiva, ele é o grande lobo predador, perseguido por aqueles que se recusam em virar presa.
Já os policiais protagonistas, em todas as temporadas, representam outro símbolo - o de uma moral que combate essa selvageria proposta por Malvo. Nesse sentido eles são equivalentes em altura - na terceira temporada, por exemplo, Varga e Gloria são os mais conscientes do que realizam em suas vidas. Eles tem uma perspectiva clara, que parece mesmo inalterável. E é esse o dilema que a série, em todas as suas temporadas, propõe - um conflito entre duas perspectivas de vida radicalmente diferentes: uma selvagem, levando em conta apenas a lei do mais forte, e outra moral, que mede e impõe limite às ações. O final da terceira temporada deixa esse combate de perspectivas bem claro.
E no meio dessa guerra simbólica de perspectivas, temos os protagonistas: consideremos o caso de Lester, na primeira temporada. No princípio, ele não tem uma perspectiva forte de vida, como a de Malvo ou de Molly - ele é confuso, em certo sentido ignorante, assim como a maioria dos personagens da série. Mas ao contrário da maioria, ele se encontra num estágio sensível - ele viveu sempre de forma passiva, engolindo o bullying de Sam e as ofensas da própria esposa. Ele engoliu tanto que em algum momento precisava botar para fora toda raiva que havia reprimido. E é nesse momento que conhece Malvo - sabemos que perspectiva ele escolheu para resolver seus dilemas.
De forma parecida isso ocorre nas outras temporadas. Peggy não era contente com a própria vida - ela vivia de farsas, e também engolia isso tudo. Ray, na terceira temporada, engoliu o tratamento diferenciado do irmão, o qual viveu com um selo que, para Ray, devia ser dele. Esses protagonistas, de todas as temporadas, por mais loucos que às vezes pareçam - e talvez justamente por isso - são os personagens mais humanos, pois passaram a vida de alguma forma rebaixados, carregando um fardo indesejável. Eles tem uma perspectiva instável de vida - nem eles mesmo sabem o que estão fazendo. E para lidar com tanto "sapo engolido", acabam escolhendo caminhos extremos, que sabemos bem como terminam.
Há muito mais a ser explorado do simbolismo dessa série - como, por exemplo, as referências biblícas; Maggie e Nikki são como duas Evas, seduzindo seus Adãos para a perdição. Mas seria interminável explorar cada símbolo dessa obra-prima - e é justamente aí que está sua grandeza. Uma pena um acontecimento tão incrível como esse quase não ter destaque aqui na Terra Brasilis.
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E aí, que perspectiva escolher? Hahahah |