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sábado, 15 de julho de 2017

Phyllis montada em Aristóteles - Sobre a sexualidade dos filósofos

Phyllis e Aristóteles
   É um fato histórico que Aristóteles foi o mestre de Alexandre, o Grande. Mas no fim da idade média, começou a popularizar-se uma lenda de que Aristóteles tenha se envolvido com Phyllis, uma consorte de Alexandre. A forma mais conhecida dessa lenda se dá através de um exemplum, que traduzi a seguir:

   "Era uma vez, Aristóteles ensinava à Alexandre que este devia evitar de aproximar-se frequentemente de sua esposa, que era muito bela, afim de que isso não impedisse seu espírito de atingir o bem supremo. Alexandre concordou. A rainha ao perceber isso ficou transtornada, e começou a seduzir Aristóteles para a cama. Muitas vezes ela cruzou com ele sozinha, de pés descalços e cabelos soltos, afim de que ele a percebesse.
   Enfim, ao percebê-la, ele começou a solicitá-la carnalmente.  Ela respondeu:
"Eu certamente não atenderei seus desejos, a não ser que me dê um sinal de amor. Venha ao meu quarto de quatro, para que me carregue como um cavalo. Assim saberei que não está me iludindo."
 Quando ele acatou a seu pedido, ela secretamente contou o ocorrido à Alexandre, que ficou aguardando e o viu carregar a rainha. Alexandre desejou a execução de Aristóteles; em sua defesa, o filósofo respondeu:
"Se ocorreu comigo, um velho quase sábio, ser iludido por uma mulher, você pode ver que o ensinei bem, pois isso também poderia ocorrer contigo, jovem homem."
   Ao ouvir isso, o rei o perdoou, e fez progressos nos ensinamentos de Aristóteles.

   E viveram felizes para sempre."


   É muito difícil que essa história tenha alguma veracidade. Coincidentemente, ela surgiu com o declínio da imagem de Aristóteles como "O Filósofo", ou aquele que mais influenciava o mundo intelectual da época. Mas essa história é um típico exemplum, e enquanto tal, seu único objetivo é passar uma mensagem moral. E essa é uma mensagem que, do ponto de vista contemporâneo, é machista em essência - Phyllis montada em Aristóteles representa os sentidos que se sobrepõem à razão.
   A história nos diz, portanto, que a razão, simbolizada por Aristóteles, deve sobrepor-se aos sentidos inferiores, simbolizados por Phyllis, mantendo assim sua hierarquia natural. Opera aqui o clássico dualismo entre corpo e alma, considerando o segundo enquanto superior ao primeiro; e tudo isso é muito de acordo com a filosofia aristotélica. O mesmo, em seus estudos, considerava uma superioridade do homem em relação à mulher, chegando ao ponto de justificá-lo com pesquisas empíricas: para o filósofo, o homem possuía mais dentes e tinha o sangue mais quente do que o da mulher.


Sentidos x Razão, numa ótica medieval

   Essa lenda nos remonta, também, à um ideal de sexualidade ascético que perpassou por toda a história da filosofia. Segundo esse ideal, o homem sábio é aquele que se afasta das tentações terrenas para seguir a vida contemplativa - numa visão platônica, para a contemplação das ideias. Isso fica bem representado nas duas gravuras acima - à esquerda, o homem é escravizado pela mulher, que representa as tentações; à direita, ocorre o inverso, enquanto ele olha contemplativamente ao céu, que representa as verdades transcendentais.
   Em ambos os casos, há uma concepção de que a mente não só é superior aos sentidos, como também é independente deste; ou seja, nessa concepção o intelecto atua de forma a priori na obtenção do conhecimento. Esse afastamento do intelecto dito puro e contemplativo de tudo que é sensitivo e carnal acabou por ditar um modelo de sexualidade que a maioria dos filósofos, conscientemente ou não, acabaram por seguir, pois foi um modelo imposto culturalmente. Em outras palavras - ao criar-se um modelo de intelecto contemplativo, acabou por criar-se conjuntamente um modelo de sexualidade ascético, embora a intenção fosse a de nem mesmo tocar em questões de sexualidade. No fim das contas, não foi possível desfazer por completo a razão dos sentidos, o intelecto da sexualidade.

Xântipe derramando um pote de dejetos sobre Sócrates

   E isso atesta muito bem a biografia dos filósofos - a grande maioria não teve filhos ou sequer casou. Entre os poucos que tiveram filhos e/ou casaram, pelo menos metade foi negligente com os filhos, ou tiveram péssimos relacionamentos. Na grande caravana de Hobbes, Locke, Hume, Adam Smith, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant, Bentham - nenhum casou. Na caravana de Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, Wittgenstein e Foucault - nenhum casou e nem teve filhos. E nem mesmo conseguimos imaginar esses pensadores como tradicionais pais de família - enquanto pensadores, acabam por seguir um outro modelo de sexualidade.
   Rousseau, por exemplo, teve cinco gêmeos com sua amante, e os abandonou num orfanato qualquer (para anos depois escrever uma obra sobre como educar crianças). Santo Agostinho teve Adeodato; mas posteriormente se converteu, chamando o filho de "fruto do meu pecado". E quanto à Bertrand Russell, é dito que relacionou-se com a esposa de seu filho esquizofrênico, o que piorou seu quadro. Quanto à Sócrates, sua relação com Xântipe é tido mais como um exemplum de que um filósofo não deve, de fato, relacionar-se intimamente. É bem provável que tenha sido sua vida familiar com Xântipe e seus filhos os responsáveis por Sócrates não ter escrito nada.
   Mas alguns poucos filósofos sobraram para nos dar a esperança de que é possível ser um bom pai, amante e pensador ao mesmo tempo. Aparentemente, é o caso de Hegel, Marx e do próprio Aristóteles. No fundo, porém, há sempre uma estranheza quando termos como filósofo, sexualidade e casamento aparecem numa mesma frase. Como se o conselho de Aristóteles para que Alexandre se afastasse das tentações de Phyllis tivesse ressoado no ouvido de toda a filosofia.

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