Nietzsche, em seu Nascimento da Tragédia, demonstra como a tragédia sucumbiu perante o "esteticismo socrático"; como a música é a expressão-primeira da tragédia, pode-se também concluir que, com a morte dessa, também o espírito musical sucumbiu perante o exacerbado racionalismo socrático. Seguindo com sua análise, Nietzsche contrapõe a tragédia com a ópera - é nessa última que o filósofo identifica uma espécie de antípoda das tragédias, interpretando-a como um acontecimento estranho e mesmo inestético. Pois, para Nietzsche, nas óperas a música está em servidão da palavra, na medida em que a melodia deve estar sempre à mercê dos recitativos, os quais explicam o decorrer do drama operístico. Aqui chegamos na problemática a qual quero me deter nesse pequeno rabisco: a da relação entre palavra e música.
Discordo parcialmente da interpretação nietzschiana acerca do gênero operístico. Embora, por um lado, eu reconheça uma relação ainda dependente da música para-com a palavra, na medida em que a música nunca flui com absoluta liberdade dessa, ainda assim é possível identificar, nas mais diversas árias e seções orquestrais, um singelo alívio ao se sentir um fenômeno puramente melódico e, enquanto tal, verdadeiramente musical.
Arrisco dizer, porém, que o nascimento [ou renascimento] da música, enquanto essa "expressão da mais alta potência melódica", se deu em Bach e teve seu ápice em Beethoven. Nas sinfonias do último temos melodias violentas e ilimitadas, capaz de romper com a individualidade do ouvinte e a nos remeter um efeito verdadeiramente trágico. Não sem razão esse compositor tinha uma genuína dificuldade para lidar com óperas, compondo apenas seu Fidélio - Beethoven tinha uma alma potencialmente melódica. A partir de Beethoven e, cerca de um século depois, com o gradual enfraquecimento da "música erudita", algo de estranho ocorre no mundo musical. Ocorre uma verdadeira ruptura, e essa música de inspirações livres e dionisíacas gradualmente desaparece. Ora, o que de fato ocorreu?
Esse "anestesiamento" da música começou de fato com a ascensão do rock. A partir desse a melodia transformou-se em verdadeira escrava do ritmo. A melodia é assim mascarada e não flui com seu potencial devastador. Ainda assim ela se esforça em coexistir com o ritmo, não sendo rebaixada pelo reino da mera palavra. Essa diferenciação da atual música popular para-com a "música clássica" explica o porquê dos ouvintes contemporâneos terem dificuldade em entender a música dos antigos compositores. Nossos ouvidos são outros.
O verdadeiro sufocamento da música, porém, se deu com a ascensão do rap. Aqui os momentos melódicos são apenas pausas para o descanso do discurso-rítmico; a melodia surge apenas como um divertimento, uma distração do real intuito do rapper - o de ritmar uma fala cheia de rimas e aspirações mais poéticas do que propriamente musicais. Se compararmos, assim, não em termos de qualidade mas sim em termos descritivos, um álbum de rap com uma sinfonia de Beethoven, sentimos assim uma distância artística abissal, a qual merece muita análise e consideração. A palavra, unida ao ritmo, enfim sucedeu em calar toda uma orquestra, abrindo um novo capítulo na conturbada história da música ocidental. Que outros caminhos estão por vir?
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Com que ouvidos Ludwig ouviria nosso querido Eminem? "Roll over, Beethoven!" |