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Auto-retrato |
As pinturas negras revelam que seu autor foi um espírito perturbado, que não via mais o mundo da mesma forma. O mundo revela-se nelas como algo distorcido, que perdeu a cor e a sanidade. Revela alguém em declínio, e tal está de acordo com a situação de Goya em seus últimos anos de vida, quando pintou esse conjunto de obras. Quem as entende, certamente já passou por situações parecidas - o que acredito ser o caso da grande maioria. Mesmo que por curtos períodos de intensa ansiedade ou de desânimo; elas parecem, para mim, como pesadelos, que nada mais são que um conjunto de experiências reais que aparecem no sono de forma embaraçada e dolorosa. Em resumo, são como um filtro do mundo na mente de um artista que vive grandes aflitos.
Ora, depois dessa descrição, fica claro que não se tratam de obras belas. Por que então continuam com estima, e ainda são debatidas e importantes no meio estético? Penso que justamente pela transparência que elas passam, em meio a um artista num estado único de espírito. Aí está a genialidade dessas obras - é raro um artista ir tão fundo em seu estado de espírito, e expô-lo com tanta sinceridade, transparência. Pois a impressão que elas passam é que seu criador vivia num mundo parecido - ele não experimentava mais o mundo da mesma forma que uma pessoa considerada saudável psicologicamente. E ele conseguiu expressar isso, mesmo com uma intenção de não expô-las ao público, conforme se acredita até então. Assim, por mais que não despertem em nós propriamente o prazer do belo, ainda assim despertam nosso interesse, por mostrarem-se como um choque ao convencional, à forma como costumamos experimentar e representar o mundo. De fato, as pinturas negras são um escárnio para com todo tipo de realismo, ou toda arte que privilegie a forma enquanto o belo. Aqui, a ênfase não é na forma, mas na expressão, no lugar de uma arte representativa e figurativa.
Mas chega de lenga-lenga, e vamos às obras, para que cada um faça a interpretação que quiser delas. Consideram-se as pinturas negras como um total de 14 obras (embora uma à parte seja debatida como a 15°). Lembrando que os nomes das obras foram dadas posteriormente por um amigo pintor de Goya; as listo a seguir com breves comentários das impressões que algumas me passaram, e da interpretação que tenho delas - clique nelas para ampliar sua resolução.
1 - Saturno devorando a su hijo
Comecemos pela mais conhecida, e a mais violenta das pinturas. Todas as outras seguem uma estrutura parecida - pouca iluminação, poucas cores, ausência de cenários e ar de obscuridade e insanidade. As cores mais evidentes são a do corpo mutilado e de seu sangue, dando uma impressão de desgosto e repulsa - a não ser, talvez, que seja um canibal. Por ser uma imagem de Saturno, é evidente ser essa uma representação do tempo em seu aspecto mais violento e hostil. Nunca antes o tempo foi representado de forma tão carnal - Goya lançou mão de todo idealismo e expressou o tempo na forma mesma como ele estava experimentando. E essa forma era justamente com essa violência - a obra reflete um artista que sente-se não somente refém do tempo, impotente perante ele, mas também violentado por esse tempo. Ele está sensível aos aspectos mais primitivos da passagem temporal.
2 - Judith y Holofernes
Judith decapitando Holofernes é um clássico pitoresco; na maioria das representações, a violência é visível, com a presença da cabeça decapitada e de seu sangue. Curiosamente, não é o que ocorre na pintura de Goya - é como se essa clássica representação não representasse, para o pintor, uma hostilidade, tal qual ocorre na pintura anterior. Há a evitação de qualquer elemento agressivo ou grosseiro - mal podemos notar a presença de Holofernes, e a adaga de Judith mais parece um pedaço de pau. Portanto, para o pintor, essa cena não representa em si algo de violento, tendo em vista que a ênfase não está na decapitação. No mundo das pinturas negras, talvez seja uma situação banal; o rosto de Judith, como praticamente todos os rostos das pinturas, é deformado e não parece expressar nada compreensível - a marca da loucura.
3 - Aquelarre ou El gran cabrón
Para os historiadores de arte em geral, essa cena representa um conjunto de bruxas na presença do Diabo em forma de bode. Também é considerado um escárnio com a punição por bruxaria existido ainda na época; a deformação dos rostos é aqui exposto da forma mais evidente, dando uma impressão dessas bruxas passarem por um misto de horror e insanidade. De fato, os únicos rostos com um mínimo de coerência é do bode e da dama de preto sentada à direita - são também os personagens mais evidentes. Talvez por serem os únicos que realmente tem consciência do que se passa - a dama pode ser a responsável pela comunicação com o bode, ao contrário de uma das interpretações de que ela seria uma iniciada, o que é contraditório com a calma que seu rosto transparece, em oposição à confusão no rosto das bruxas.
4 - La romería de San Isidro
Essa pintura e a sua posterior representam uma peregrinação à um local perto da casa em que Goya pintou suas obras. A deformação dos rostos também é gritante, dessa vez numa multidão que se prolonga rumo à paisagem sombria no fundo.
5 - Peregrinación a la fuente de San Isidro
6 - Doña Leocadia
Esse é um caso curioso entre as pinturas - de todos os rostos, é o único que não se apresenta deformado, embora ainda inexpressivo. A inexpressividade, junto à vestimenta de luto, dão prosseguimento ao tom sombrio da série de pinturas. Ainda há melancolia, portanto, mas a forma mais segura da mulher dá um tom de alívio à série. Provavelmente era alguém significante para o pintor que, da mesma forma na pintura, aliviava sua vida obscura. Especula-se que era Leocadia, uma empregada de Goya 35 anos mais jovem, com a qual pode ter tido um caso.
7 - Dos viejos
O rosto à direita é um dos mais deformados, de aparência demoníaca; talvez represente más vozes que habitam na consciência do velho, as quais ele, aprisionado em si, não consegue livrar-se. Outros interpretam que pode relacionar-se com seu problema auditivo.
8 - Hombres leyendo
Acredita-se que representa políticos lendo e comentando um artigo do jornal sobre eles mesmos.
9 - Dos mujeres riéndose de un hombre
Sim, elas estão rindo de um homem se masturbando. É, esquisito...
10 - Duelo a garrotazos
De todas é a mais colorida e com um cenário mais detalhado. Repare como em todas as pinturas, principalmente as horizontais, as figuras mais evidentes nunca estão no centro, mas nos cantos - outro traço da inconvencionalidade da série.
11 - Átropos
Átropos representa as moiras, as três deusas do destino na mitologia grega.
12 - Asmodea / Visión fantástica
Os soldados à direita são franceses, e a população em fuga acredita-se ser de refugiados da guerra anterior com a França.
13 - Dos viejos comiendo sopa
Apesar de representar dois velhos, apenas o primeiro tem ainda uma aparência viva, enquanto o segundo parece cadavérico e decomposto. É provável que represente um mesmo indivíduo - primeiro na velhice, e logo depois morto, mostrando a percepção temporal de alguém que está próximo à morte.
14 - El Perro
A última é a mais simples e mais enigmática - apenas a cabeça de um cachorro que parece soterrado por uma espécie de areia movediça; a última coisa que lhe resta é olhar ao céu vazio. O mais interessante aqui é o uso desse vazio, que ocupa mais da metade da pintura - um vazio amarelado, quase sem cor, tal qual ocorre nas outras pinturas da série. Mas aqui esse vazio ganha um sentido a partir do olhar do cachorro, que nos convida a também olhar esse vazio. É como o olhar de um homem para o céu infinito, mas no caso da pintura, a partir de uma ótica obscura e de aflito. Uma obra singular na história da arte - uma das poucas que deu, ao espaço vazio da pintura, um sentido.
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