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(1596) Judith e Holofernes - Fede Galizia |
antigo testamento, o rei babilônico Nabucodonosor envia o general Holofernes para vingar-se das nações que se opuseram a seu reino. Em um desses cercos, na cidade de Betulia, Holofernes é
seduzido por Judith, uma judia e viúva, que se infiltra no acampamento e na tenda do general. Após embebedá-lo, Judith decapita Holofernes, retornando à Betulia com a cabeça do general, dando sequência à vitória dos judeus sobre o cerco.
Ora, ela não é assim uma femme fatale no sentido tradicional - isso é, da mulher que seduz para atender um interesse pessoal. Ela o é num sentido heroico, atendendo à salvação de um povo. Isso é o interessante dessa figura, que explora um símbolo, um arquétipo do poder feminino - sua arma, assim como a das femme fatale tradicionais, é a sedução; em contraste, ela a usa com um objetivo nobre, a ponto de ser retratada como uma santa.
Curiosamente, ela não é o único caso de uma mulher que, através da sedução, consegue a decapitação de um homem. Na Índia temos Mohini, uma das encarnações de Vishnu - no épico Mahabharata, é dito que os Asuras e Devas brigavam pela Amrita, o néctar da imortalidade. Os Asuras, espécie de demônios para os hindus, queriam a Amrita apenas para si; para resolver a situação, Vishnu encarna na forma de uma sedutora donzela, Mohini. Após seduzir os Asuras, consegue a Amrita para si e a devolve aos Devas. Rahu, porém, um dos Asuras, se disfarça de um Deus e tenta beber a Amrita; Vishnu, na forma de Mohini, sabendo de seu plano, decapita o demônio. E como esquecer Salomé, que após uma sedutora dança para Herodes, o convence a dar-lhe numa bandeja a cabeça de João Batista?
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Mohini decapitando Rahu |
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À esquerda Judith; à direita Salomé. Ambas de Lucas Cranach |
Independente das intenções de todas essas históricas e/ou mitológicas sedutoras, todas reforçam que elas, de fato, representam um arquétipo feminino. Minha interpretação é de que representam um arquétipo a partir de um ponto de vista masculino - todas surgiram e se desenvolveram em sociedades patriarcais. Elas também representam, assim, um medo primitivo dos homens em relação ao poder feminino, esse que de tempos em tempos pode sobrepor-se ao masculino a partir da única arma que lhes foi deixada - a sexualidade.
Elas são todas, no fundo, o reconhecimento do mundo masculino de que a mulher sempre tem seu poder, independente do quão reprimidas ou coadjuvantes elas são em seu atual momento histórico. E, como dito, nos tempos históricos dessas figuras, a única arma que lhes sobrou foi a sexualidade, que é explorado como um ponto fraco dos homens. A decapitação desses diversos indivíduos também é de um forte simbolismo, dando margem à interpretações psicanalíticas, as quais não tenho competência de fazer. Mas é muito claro que demonstram o reconhecimento do poder da mulher em geral, que através de um processo histórico encontra-se reprimida; e quando esse poder enfim desperta, o resultado são as decapitações, que surgem ao mesmo tempo como uma vingança e uma justiça em resposta à violência masculina.
Essa é, enfim, minha interpretação dessa figura clássica no mundo das artes. Separo a seguir algumas pinturas que me parecem mais relevantes desse arquétipo do poder feminino; sintam-se à vontade em interpretar da sua forma.
(1505) Judith - Giorgione
Uma obra-prima de Giorgione, é a mais sugestiva das representações de Judith: seu olhar sobre a cabeça de Holofernes demonstra sua vitória e superioridade. O olhar de Judith não é o de uma santa, ou de uma jovem ingênua que se sentiu obrigada ao ato, conforme foi interpretado pela maioria dos pintores - seu olhar é de uma femme fatale em essência. A sua perna, em parte descoberta sobre a cabeça de Holofernes, remonta ao seu aspecto sexual, de uma forma singela e magistral. O vestido vermelho também reforça essa noção; já sua espada comprida devolve à Judith seu aspecto de poder, representando-a num todo como uma mulher forte, determinada e que tem consciência de seu dever. Ela assemelha-se, aqui, à grandeza de Shiva, que dança sobre o anão Apasmara.
(1613) Judith com a cabeça de Holofernes - Cristofano Allori
Provavelmente a mais conhecida pintura de Cristofano, e a que pior representa Judith - que contraste com a obra de Giorgione! Aqui temos uma interpretação católica da história bíblica, que retira de Judith todo seu poder e sexualidade, retornando-a ao arquétipo da mulher como uma pura e imaculada virgem. É uma total distorção do verdadeiro arquétipo de Judith, que é reinterpretado aqui para adequar-se à religiosidade cristã. É excluído - ou encobrido - a sexualidade de Judith, e até mesmo seu poder: não sem razão sua espada é cortada, e mal podemos ver a lâmina. Seu olhar não é o de uma sedutora, mas o de uma santa e justiceira.
(1598-99) Judith decapitando Holofernes - Caravaggio
Se a Judith de Giorgione é a mais sugestiva e a que melhor a representa de acordo com seu arquétipo, a de Caravaggio foi a mais inovadora e ousada ao representar, pela primeira vez, o ato mesmo da decapitação - o gênio e a qualidade do chiroscuro de Caravaggio são inquestionáveis e já consagrados. Aqui o foco não é mais em Judith, mas no próprio ato teatral da decapitação, que é guiado pelos olhares de Judith e sua empregada; a disposição das figuras é quase equivalente.O gênio da pintura está não só no impacto da forma como a violência é mostrada, mas na expressões dos personagens - o horror de Holofernes é perfeitamente exposto; Judith, porém, retoma aqui a imagem de inocência e ingenuidade, expressando aversão ao ato, enquanto parece influenciada e guiada pela empregada, de aparência maléfica.
(1614) Judith decapitando Holofernes - Artemisia Gentileschi
Enfim, Judith representada por uma mulher! Gentileschi retoma a cena violenta de Caravaggio, mas com uma outra interpretação. Aqui há um equilíbrio nos personagens e na cena, conforme exposto pela triangulação entre as três cabeças. Ao contrário da Judith de Caravaggio, aqui seu rosto é de pura determinação, e sua empregada aparece como uma simples cúmplice. Embora não tenha o poder expressivo de Caravaggio, a interpretação precisa do arquétipo de Judith como uma mulher que não teme usar seu poder é devidamente utilizada, harmonizando-se com a maravilhosa triangulação proposta pela pintora.
(1901) Judith e a cabeça de Holofernes - Klimt
Por último, uma adaptação mais moderna da personagem bíblica. O foco é todo em Judith, ainda mais que no quadro de Giorgione - mal podemos notar a cabeça decapitada. O quadro de Klimt não tem a beleza formal dos quadros tradicionais, mas é de forte poder expressivo - o olhar de Judith é de triunfo e de um prazer quase sexual. Somado a isso, os detalhes dourados da roupa e do fundo do quadro, típicos de seu simbolismo, contribuem à essa sensação de glória que a pintura passa. De fato, é um quadro sobre o triunfo feminino, indo além da própria Judith - se não é pela inscrição na moldura, mal perceberíamos tratar-se de uma representação dessa personagem. E creio que é isso que, expressivamente, todos as suas representações devem passar - o triunfo do poder feminino.
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