sábado, 22 de julho de 2017

Camille Claudel - Quando o gênio não floresce

   Os gênios artísticos são como raras flores que precisam de determinadas condições que possibilitem seu crescimento. Claudel é o infeliz e trágico caso de uma dessas flores, cujo crescimento não foi
possível devido às infelizes circunstâncias que se sobrepuseram ao seu gênio, fazendo de sua existência um fardo dos mais árduos. Mas, tal qual uma semente que luta contra as adversidades do solo para ascender à luz, assim lutou ela bravamente e, por alguns momentos, sentiu o divino calor dessa luz, expresso em suas maiores obras.
   Infelizmente, porém, as adversidades foram mais fortes, forçando-a a viver seus últimos trinta anos de vida isolada numa instituição psiquiátrica. Listo a seguir essas principais adversidades, que fazem dessa artista um exemplo de alguém que, embora tivesse um enorme potencial, não pôde este ser desenvolvido devido às adversidades de seu tempo e cultura. Em outras palavras - um exemplo de uma artista que nasceu no momento errado, e que estava à frente de seu tempo.

1 - Seu momento histórico: Camille Claudel (1864-1943) viveu num momento histórico em que, não apenas na França, mas em todo o ocidente, a glória e a grandeza eram destinadas somente aos homens, inclusive no campo da arte. A grandiosa École des Beaux-Arts barrava a entrada de mulheres, e Camille só encontrou espaço na já extinta Academia Colarossi. Mesmo que algumas mulheres alcançassem algum prestígio, como a impressionista Berthe Morisot, nunca era algo comparável ao prestígio recebido pelos homens (tanto o é que essas artistas, quando lembradas, são sempre comparadas à seus contemporâneos homens).
    Assim - culturalmente as mulheres não eram estimuladas à prática artística, sendo confinadas na esfera do lar familiar; e as poucas que se arriscavam nesse mundo, muito provavelmente não receberiam o prestígio desejado. Tivesse nascido hoje, Claudel teria muitas mais possibilidades para seu desenvolvimento artístico.

2 - Sua família e a condição financeira: Camille dedicou-se à uma arte cara, que além disso dava pouco retorno financeiro, principalmente para alguém que não correspondia ás expectativas da época. Ela ficou financeiramente dependente, assim, de sua família; seu pai apoiava sua vocação artística, e até sua morte foi sua principal fonte de dinheiro.
   Para piorar a situação, Camille não tinha uma boa relação com a mãe e o irmão. A primeira parecia odiá-la, pois desejava um filho homem e não apoiava a escolha da filha de ser escultora. E o irmão, o conhecido escritor Paul Claudel, era provavelmente um grande invejoso - nunca reconheceu ou incentivou o talento da irmã, e preferia vê-la na obscuridade. Após a morte do pai, sua família tomou controle da finança, cortando todo o incentivo financeiro à Camille, que foi aos poucos obrigada a desistir de sua arte.

3 - Sua relação com Rodin: Claudel foi conhecida por seu relacionamento íntimo com Auguste Rodin, que era vinte e quatro anos mais velho. O atrito entre os dois era de cunho sentimental e artístico; sentimental pois Rodin recusou separar-se de sua mulher para conviver com Camille, considerando-a apenas como aprendiz e amante. E artístico pois, com o tempo, Camille passou a adotar um estilo próprio de arte, que se afastava do estilo idealizado por Rodin; isso com o tempo foi progressivamente incomodando Rodin, que cortou os laços com Claudel. A separação entre ambos e seu envolvimento complexo, que resultou num eventual aborto, foi a gota d'água para a escultora, cuja saúde mental deteriorou-se.

4 - Sua instabilidade psicológica: Depois de todas as adversidades que vimos acima, era inevitável o desenvolvimento, na escultora, de uma instabilidade psicológica. Ela passou a expressar esses sinais através de manias de perseguição, acusando Rodin de persegui-la e roubar suas ideias. A família aproveitou-se de sua instabilidade e, após a morte do pai, internou-a numa clínica até o fim de sua vida, mesmo contra sua vontade.
   Há relatos de amigos que visitaram Camille e notaram que ela não tinha nenhum transtorno grave, a ponto de ser isolada da sociedade; os próprios médicos  da clínica ocasionalmente tentavam um acordo com essa pseudo-família, para tentar reintegrá-la ao círculo social. Mas estes sempre rejeitavam, deixando claro sua negligência para com ela. No fim das contas, fica claro que seus transtornos foram um efeito, e não uma causa, de uma vida conflituosa com um meio social e familiar que não atenderam à seu potencial.

   Com todas essas adversidades, Camille Claudel se mostra uma artista trágica; suas grandes obras, das poucas que sobraram e foram possíveis, demonstram um esforço alquímico em transformar todo esse sofrimento em algo grandioso e divino. Ela é, assim, um desses casos especiais na história da arte - daqueles que fizeram, de suas adversidades, sua arte. É aí que está sua grandeza, que fez seu nome durar e inspirar admiração até nossos dias.


(1893) Cloto - Escultura em Gesso


   Nessa escultura em gesso, Claudel representa Cloto, umas das moiras da mitologia grega. As moiras eram uma tríade de deusas que determinavam os destinos dos deuses e homens ao fabricar, tecer e cortar aquilo que seria o fio da vida de cada um. No caso, Cloto era a responsável por tecer esses fios, determinando, por exemplo, o momento de nascimento e morte dos indivíduos. Embora a representação das moiras seja algo relativamente comum no mundo da arte, a representação de apenas uma delas, isolada das outras, é bem raro. E aqui, curiosamente, Claudel representa a moira sem os ideais de beleza clássicos; ela é velha e cadavérica, tal qual uma deusa da morte.


(1897) Les Causeuses e La Vague - Esculturas em Mármore, Bronze e Onyx



     
   Ambas as esculturas, feitas aproximadamente na mesma época, demonstram uma mesma textura, já que foram esculpidas com os mesmos materiais. Já vemos aqui mais de sua individualidade, ao tratar de temas não usuais e de forte apelo simbólico. Na Causeuses, quatro pessoas fofocam entre quatro paredes, deixando evidente o quão secreto é esse ato e , de certa forma, também vulgar. Em La Vague, três mulheres fazem uma espécie de ciranda, enquanto uma onda está preste a engoli-las. O simbolismo é aqui muito forte, como três pessoas que se entretêm, enquanto o acaso - ou o destino - está preste a carregá-los com uma adversidade.


(1905) Perseu e a Górgona - Escultura em Mármore


   Claudel retoma, aqui, a mitologia grega, fonte inspiradora de toda arte da idade moderna. Nesse mito, Perseu decapita uma das górgonas e as observa através do reflexo em seu escudo, pois eram elas capazes de petrificar quem as olhassem diretamente. É uma escultura bem moderna, na qual Claudel se afasta do excesso de detalhes e do realismo idealizado pelos renascentistas.


(1905) Sakountala - Escultura em Mármore


    Na Sakountala, Camille expõe dois amantes ardentes em sua paixão, se aproximando mais de algumas obras de Rodin, como L'Éternelle idole. Como nessa escultura, a mulher se situa acima do homem, que é endeusada e idealizada por este. Aqui, porém, há um menor teor sexual, enquanto a mulher parece render-se à paixão de seu amado.


(1905) La Valse  - Escultura em Bronze


    Penso que a arte escultural é em muito parecida com a fotografia - é o saber captar o momento certo, que expresse da maneira mais precisa aquilo que é intencionado pelo artista. Em La Valse, Camille encontra esse momento certo, de uma forma única e nova; é uma escultura forte em sua expressão, no qual os amantes se seguram com firmeza, como se nunca fossem se largar. Também é forte em seu simbolismo, ao utilizar uma dança de valsa. Pois a dança representa a mais profunda pulsão artística - uma pulsão de redenção à vida; o dançarino é aquele que tem em sua dança uma resposta ao que há de mais trágico na existência. E talvez seja isso que Camille tenha encontrado em seu amor, e o expôs nesta escultura.


1898 - 1913 L’âge mûr ou La destinée - Escultura em Bronze


   Por fim, sua obra-prima, no qual Camille expõe seu medo mais profundo - o de ser abandonada por seu amado. Os mesmos amantes que se seguram com tanta firmeza em La Valse, aqui se afastam, sendo o amante levado por uma outra figura, enquanto a outra implora sua permanência. A emotividade é intensa, e quase sentimos na pele, com a contemplação dessa obra, a profundidade da dor de alguém que sofre um abandono de alguém que realmente era importante para si. É uma escultura no qual tudo se encaixa para o expressar dessa emotividade, dessa dor - seu arranjo é perfeito, no qual não há nada a se retirar ou acrescentar.

sábado, 15 de julho de 2017

Phyllis montada em Aristóteles - Sobre a sexualidade dos filósofos

Phyllis e Aristóteles
   É um fato histórico que Aristóteles foi o mestre de Alexandre, o Grande. Mas no fim da idade média, começou a popularizar-se uma lenda de que Aristóteles tenha se envolvido com Phyllis, uma consorte de Alexandre. A forma mais conhecida dessa lenda se dá através de um exemplum, que traduzi a seguir:

   "Era uma vez, Aristóteles ensinava à Alexandre que este devia evitar de aproximar-se frequentemente de sua esposa, que era muito bela, afim de que isso não impedisse seu espírito de atingir o bem supremo. Alexandre concordou. A rainha ao perceber isso ficou transtornada, e começou a seduzir Aristóteles para a cama. Muitas vezes ela cruzou com ele sozinha, de pés descalços e cabelos soltos, afim de que ele a percebesse.
   Enfim, ao percebê-la, ele começou a solicitá-la carnalmente.  Ela respondeu:
"Eu certamente não atenderei seus desejos, a não ser que me dê um sinal de amor. Venha ao meu quarto de quatro, para que me carregue como um cavalo. Assim saberei que não está me iludindo."
 Quando ele acatou a seu pedido, ela secretamente contou o ocorrido à Alexandre, que ficou aguardando e o viu carregar a rainha. Alexandre desejou a execução de Aristóteles; em sua defesa, o filósofo respondeu:
"Se ocorreu comigo, um velho quase sábio, ser iludido por uma mulher, você pode ver que o ensinei bem, pois isso também poderia ocorrer contigo, jovem homem."
   Ao ouvir isso, o rei o perdoou, e fez progressos nos ensinamentos de Aristóteles.

   E viveram felizes para sempre."


   É muito difícil que essa história tenha alguma veracidade. Coincidentemente, ela surgiu com o declínio da imagem de Aristóteles como "O Filósofo", ou aquele que mais influenciava o mundo intelectual da época. Mas essa história é um típico exemplum, e enquanto tal, seu único objetivo é passar uma mensagem moral. E essa é uma mensagem que, do ponto de vista contemporâneo, é machista em essência - Phyllis montada em Aristóteles representa os sentidos que se sobrepõem à razão.
   A história nos diz, portanto, que a razão, simbolizada por Aristóteles, deve sobrepor-se aos sentidos inferiores, simbolizados por Phyllis, mantendo assim sua hierarquia natural. Opera aqui o clássico dualismo entre corpo e alma, considerando o segundo enquanto superior ao primeiro; e tudo isso é muito de acordo com a filosofia aristotélica. O mesmo, em seus estudos, considerava uma superioridade do homem em relação à mulher, chegando ao ponto de justificá-lo com pesquisas empíricas: para o filósofo, o homem possuía mais dentes e tinha o sangue mais quente do que o da mulher.


Sentidos x Razão, numa ótica medieval

   Essa lenda nos remonta, também, à um ideal de sexualidade ascético que perpassou por toda a história da filosofia. Segundo esse ideal, o homem sábio é aquele que se afasta das tentações terrenas para seguir a vida contemplativa - numa visão platônica, para a contemplação das ideias. Isso fica bem representado nas duas gravuras acima - à esquerda, o homem é escravizado pela mulher, que representa as tentações; à direita, ocorre o inverso, enquanto ele olha contemplativamente ao céu, que representa as verdades transcendentais.
   Em ambos os casos, há uma concepção de que a mente não só é superior aos sentidos, como também é independente deste; ou seja, nessa concepção o intelecto atua de forma a priori na obtenção do conhecimento. Esse afastamento do intelecto dito puro e contemplativo de tudo que é sensitivo e carnal acabou por ditar um modelo de sexualidade que a maioria dos filósofos, conscientemente ou não, acabaram por seguir, pois foi um modelo imposto culturalmente. Em outras palavras - ao criar-se um modelo de intelecto contemplativo, acabou por criar-se conjuntamente um modelo de sexualidade ascético, embora a intenção fosse a de nem mesmo tocar em questões de sexualidade. No fim das contas, não foi possível desfazer por completo a razão dos sentidos, o intelecto da sexualidade.

Xântipe derramando um pote de dejetos sobre Sócrates

   E isso atesta muito bem a biografia dos filósofos - a grande maioria não teve filhos ou sequer casou. Entre os poucos que tiveram filhos e/ou casaram, pelo menos metade foi negligente com os filhos, ou tiveram péssimos relacionamentos. Na grande caravana de Hobbes, Locke, Hume, Adam Smith, Descartes, Spinoza, Leibniz, Kant, Bentham - nenhum casou. Na caravana de Schopenhauer, Kierkegaard, Nietzsche, Sartre, Wittgenstein e Foucault - nenhum casou e nem teve filhos. E nem mesmo conseguimos imaginar esses pensadores como tradicionais pais de família - enquanto pensadores, acabam por seguir um outro modelo de sexualidade.
   Rousseau, por exemplo, teve cinco gêmeos com sua amante, e os abandonou num orfanato qualquer (para anos depois escrever uma obra sobre como educar crianças). Santo Agostinho teve Adeodato; mas posteriormente se converteu, chamando o filho de "fruto do meu pecado". E quanto à Bertrand Russell, é dito que relacionou-se com a esposa de seu filho esquizofrênico, o que piorou seu quadro. Quanto à Sócrates, sua relação com Xântipe é tido mais como um exemplum de que um filósofo não deve, de fato, relacionar-se intimamente. É bem provável que tenha sido sua vida familiar com Xântipe e seus filhos os responsáveis por Sócrates não ter escrito nada.
   Mas alguns poucos filósofos sobraram para nos dar a esperança de que é possível ser um bom pai, amante e pensador ao mesmo tempo. Aparentemente, é o caso de Hegel, Marx e do próprio Aristóteles. No fundo, porém, há sempre uma estranheza quando termos como filósofo, sexualidade e casamento aparecem numa mesma frase. Como se o conselho de Aristóteles para que Alexandre se afastasse das tentações de Phyllis tivesse ressoado no ouvido de toda a filosofia.

quinta-feira, 13 de julho de 2017

Lady Godiva - Um Símbolo da Sexualidade

   Lady Godiva (990-1067) foi uma aristocrata saxônica (antigos britânicos), esposa do duque de Mércia. Segundo a lenda, seu marido cobrava impostos abusivos dos cidadãos de Coventry, uma das cidades de seu reino. Godiva se compadecia de seus cidadãos, e pedia sempre ao marido que reduzisse os impostos, e esse negava. Mas ela continuava insistindo, ao ponto do marido exclamar: "Cumprirei sua vontade, no dia que cavalgar nua pelas ruas de Coventry!"
   Mal sabia o duque que Godiva levaria sua exclamação a sério - após enviar uma ordem aos cidadãos que todos fechassem suas janelas e permanecessem em seus lares, a fidalga cavalga nua pelas ruas da cidade, para a surpresa do marido. Apenas um homem chamado Tom atreveu-se a observá-la escondido, como um clássico voyeur. Segundo a maioria das versões da lenda, ele ficou cego após observar Godiva, seja por punição divina ou pelos próprios cidadãos. De qualquer forma, o conde cumpriu a promessa, diminuindo os impostos opressivos ao povo de Coventry.
   Sendo a história verídica ou não, é de qualquer forma interessante pelo quão inusitada se mostra. Considerando que foi inventada, provavelmente seus criadores não tinham nada em mente, nenhuma mensagem específica. Mas vendo enquanto criação inconsciente, parece ser uma junção de vários símbolos culturais, que formaram essa imagem de Lady Godiva a cavalgar nua. O cavalo é bem conhecido da psicanálise, e parece sempre relacionar-se com a sexualidade. Assim, uma mulher que cavalga nua nas ruas de uma cidade, parece simbolizar um desejo de liberdade sexual - alguém que restringia sua sexualidade, na forma do cavalo, mas que enfim libertou-se de suas repressões. O fato de estar acima do cavalo também parece simbolizar alguém que dominou seus impulsos. Ou talvez eu esteja viajando. De qualquer forma, o mundo da arte não perderia a chance de representar essa lenda de apelo tão forte - das obras com essa temática, duas me chamaram atenção:


Lady Goliva (século XIX) - John Thomas




   A única obra relevante desse desconhecido escultor, cuja beleza me levou à lenda de Godiva. Seus aspectos formais são belíssimos e simples. Retrata perfeitamente o momento da cavalgada - enquanto o cavalo parece em movimento, Godiva parece imóvel, tal qual sua vontade de ajudar seus cidadãos. Ela demonstra certa timidez, com os cabelos a cobrir sua parte íntima - tal qual Godiva foi retratada pela lenda, onde a história pretende dar a entender que sua exposição foi com um propósito idealista, e não sexual (embora, simbolicamente, o aspecto sexual esteja fortemente presente).


 Lady Goliva (1897) - John Collier




   As cores aqui são fortes e vibrantes, especialmente o vermelho, que reforça o apelo sexual da lenda de Goliva. Como na escultura de John Thomas, optou-se pela fidalga tímida que se compadeceu de seus compatriotas. Apesar disso e da serenidade em seu olhar, sua pose também reflete uma determinação em cumprir o ato de rebeldia, tal qual um símbolo feminista.

terça-feira, 11 de julho de 2017

A narrativa simbólica na série Fargo

   Fargo é sempre a primeira série que recomendo quando pedem minha sugestão. Isso porque acredito ser uma série que agrade tanto os flexíveis quanto os mais exigentes. Para os primeiros, é oferecido um roteiro instigante, cheio de reviravoltas e surpresas, além das histórias de violência e poder que agradam à maioria do público. Para os segundos, é oferecido mais que isso - há um fundo filosófico que perpassa todas as temporadas da série, e que é seu principal atrativo. É cheia de diálogos memoráveis e cada episódio nos passa um simbolismo diferente. No fim, nos sentimos instigados a investigar esses simbolismos, pois a série parece nos passar uma enxurrada de significados que nos convidam a serem compreendidos.



   Fargo não é, assim, uma narrativa comum, que só nos passa determinados acontecimentos que se ligam entre si - ela é uma narrativa simbólica, no qual suas histórias parecem sempre desenvolver significados, mais do que simples histórias contadas. E o mais curioso é que os que nos transmitem mais significados, e que parecem mais conscientes de sua vida e suas ações, são justamente seus vilões, o que nos dá um contraste muito grande do que geralmente esperamos de um vilão de uma série. Fargo é assim uma crítica de nossa forma maniqueísta de representar o mundo, seja só em nossas cabeças ou seja na própria televisão. Seus vilões e protagonistas não contam uma história moral, sobre bem e mal - é uma história sobre o poder e nossa relação com ele. E no fim das contas, todos temos alguma relação com o poder.

Malvo e Vargas, vilões da primeira e última temporada

   Não que seus vilões sejam um exemplo para se seguir a vida. Mas ficou claro, após assistir as três temporadas, que Fargo atua justamente como um questionamento de nossos ideais, e isso se dá principalmente a partir das figuras de seus vilões. São personagens conflituosos, que nos chocam com a perspectiva filosófica que nos passam de suas vidas. Sim, Malvo e Vargas possuem uma filosofia clara - para eles tudo é relação de poder, e suas vidas consiste no esforço em expandir o quanto puder suas próprias esferas de poder. Nada além disso.
   É uma forma fria e violenta de se enxergar o mundo, onde valores como o da empatia, e sentimentos como o amor, não existem - o choque desses personagens está não apenas em suas ações ou caráter, mas principalmente nessas perspectivas de vida. Malvo deixa isso muito claro ao perguntar, em forma de enigma, por que enxergamos mais tons de verde do que de qualquer outra cor. E a resposta, como dito por Molly, é porque, quando vivíamos na selva, precisávamos ver esses tons de verde com mais precisão, afim de que pudéssemos notar o inimigo predador em meio à selva. Ora, para Malvo nunca saímos da selva - para ele o mundo divide-se entre presa e predador. Nessa perspectiva, ele é o grande lobo predador, perseguido por aqueles que se recusam em virar presa.




   Já os policiais protagonistas, em todas as temporadas, representam outro símbolo - o de uma moral que combate essa selvageria proposta por Malvo. Nesse sentido eles são equivalentes em altura - na terceira temporada, por exemplo, Varga e Gloria são os mais conscientes do que realizam em suas vidas. Eles tem uma perspectiva clara, que parece mesmo inalterável. E é esse o dilema que a série, em todas as suas temporadas, propõe - um conflito entre duas perspectivas de vida radicalmente diferentes: uma selvagem, levando em conta apenas a lei do mais forte, e outra moral, que mede e impõe limite às ações. O final da terceira temporada deixa esse combate de perspectivas bem claro.
   E no meio dessa guerra simbólica de perspectivas, temos os protagonistas: consideremos o caso de Lester, na primeira temporada. No princípio, ele não tem uma perspectiva forte de vida, como a de Malvo ou de Molly - ele é confuso, em certo sentido ignorante, assim como a maioria dos personagens da série. Mas ao contrário da maioria, ele se encontra num estágio sensível - ele viveu sempre de forma passiva, engolindo o bullying de Sam e as ofensas da própria esposa. Ele engoliu tanto que em algum momento precisava botar para fora toda raiva que havia reprimido. E é nesse momento que conhece Malvo - sabemos que perspectiva ele escolheu para resolver seus dilemas.
   De forma parecida isso ocorre nas outras temporadas. Peggy não era contente com a própria vida - ela vivia de farsas, e também engolia isso tudo. Ray, na terceira temporada, engoliu o tratamento diferenciado do irmão, o qual viveu com um selo que, para Ray, devia ser dele. Esses protagonistas, de todas as temporadas, por mais loucos que às vezes pareçam - e talvez justamente por isso - são os personagens mais humanos, pois passaram a vida de alguma forma rebaixados, carregando um fardo indesejável. Eles tem uma perspectiva instável de vida - nem eles mesmo sabem o que estão fazendo. E para lidar com tanto "sapo engolido", acabam escolhendo caminhos extremos, que sabemos bem como terminam.
  Há muito mais a ser explorado do simbolismo dessa série - como, por exemplo, as referências biblícas; Maggie e Nikki são como duas Evas, seduzindo seus Adãos para a perdição. Mas seria interminável explorar cada símbolo dessa obra-prima - e é justamente aí que está sua grandeza. Uma pena um acontecimento tão incrível como esse quase não ter destaque aqui na Terra Brasilis.


E aí, que perspectiva escolher? Hahahah


sábado, 8 de julho de 2017

O poder da mulher nas representações de Judith decapitando Holofernes

(1596) Judith e Holofernes - Fede Galizia
   Judith foi uma femme fatale do mundo das artes, e uma das primeiras a se ter história. Segundo o
antigo testamento, o rei babilônico Nabucodonosor envia o general Holofernes para vingar-se das nações que se opuseram a seu reino. Em um desses cercos, na cidade de Betulia, Holofernes é
seduzido por Judith, uma judia e viúva, que se infiltra no acampamento e na tenda do general. Após embebedá-lo, Judith decapita Holofernes, retornando à Betulia com a cabeça do general, dando sequência à vitória dos judeus sobre o cerco.
   Ora, ela não é assim uma femme fatale no sentido tradicional - isso é, da mulher que seduz para atender um interesse pessoal. Ela o é num sentido heroico, atendendo à salvação de um povo. Isso é o interessante dessa figura, que explora um símbolo, um arquétipo do poder feminino - sua arma, assim como a das femme fatale tradicionais, é a sedução; em contraste, ela a usa com um objetivo nobre, a ponto de ser retratada como uma santa.
   Curiosamente, ela não é o único caso de uma mulher que, através da sedução, consegue a decapitação de um homem. Na Índia temos Mohini, uma das encarnações de Vishnu - no épico Mahabharata, é dito que os Asuras e Devas brigavam pela Amrita, o néctar da imortalidade. Os Asuras, espécie de demônios para os hindus, queriam a Amrita apenas para si; para resolver a situação, Vishnu encarna na forma de uma sedutora donzela, Mohini. Após seduzir os Asuras, consegue a Amrita para si e a devolve aos Devas. Rahu, porém, um dos Asuras, se disfarça de um Deus e tenta beber a Amrita; Vishnu, na forma de Mohini, sabendo de seu plano, decapita o demônio. E como esquecer Salomé, que após uma sedutora dança para Herodes, o convence a dar-lhe numa bandeja a cabeça de João Batista?

Mohini decapitando Rahu


À esquerda Judith; à direita Salomé. Ambas de Lucas Cranach

   Independente das intenções de todas essas históricas e/ou mitológicas sedutoras, todas reforçam que elas, de fato, representam um arquétipo feminino. Minha interpretação é de que representam um arquétipo a partir de um ponto de vista masculino - todas surgiram e se desenvolveram em sociedades patriarcais. Elas também representam, assim, um medo primitivo dos homens em relação ao poder feminino, esse que de tempos em tempos pode sobrepor-se ao masculino a partir da única arma que lhes foi deixada - a sexualidade.
    Elas são todas, no fundo, o reconhecimento do mundo masculino de que a mulher sempre tem seu poder, independente do quão reprimidas ou coadjuvantes elas são em seu atual momento histórico. E, como dito, nos tempos históricos dessas figuras, a única arma que lhes sobrou foi a sexualidade, que é explorado como um ponto fraco dos homens. A decapitação desses diversos indivíduos também é de um forte simbolismo, dando margem à interpretações psicanalíticas, as quais não tenho competência de fazer. Mas é muito claro que demonstram o reconhecimento do poder da mulher em geral, que através de um processo histórico encontra-se reprimida; e quando esse poder enfim desperta, o resultado são as decapitações, que surgem ao mesmo tempo como uma vingança e uma justiça em resposta à violência masculina.
   Essa é, enfim, minha interpretação dessa figura clássica no mundo das artes. Separo a seguir algumas pinturas que me parecem mais relevantes desse arquétipo do poder feminino; sintam-se à vontade em interpretar da sua forma.



(1505) Judith - Giorgione




   Uma obra-prima de Giorgione, é a mais sugestiva das representações de Judith: seu olhar sobre a cabeça de Holofernes demonstra sua vitória e superioridade. O olhar de Judith não é o de uma santa, ou de uma jovem ingênua que se sentiu obrigada ao ato, conforme foi interpretado pela maioria dos pintores - seu olhar é de uma femme fatale em essência. A sua perna, em parte descoberta sobre a cabeça de Holofernes, remonta ao seu aspecto sexual, de uma forma singela e magistral. O vestido vermelho também reforça essa noção; já sua espada comprida devolve à Judith seu aspecto de poder, representando-a num todo como uma mulher forte, determinada e que tem consciência de seu dever. Ela assemelha-se, aqui, à grandeza de Shiva, que dança sobre o anão Apasmara.



(1613) Judith com a cabeça de Holofernes - Cristofano Allori




   Provavelmente a mais conhecida pintura de Cristofano, e a que pior representa Judith - que contraste com a obra de Giorgione! Aqui temos uma interpretação católica da história bíblica, que retira de Judith todo seu poder e sexualidade, retornando-a ao arquétipo da mulher como uma pura e imaculada virgem. É uma total distorção do verdadeiro arquétipo de Judith, que é reinterpretado aqui para adequar-se à religiosidade cristã. É excluído - ou encobrido - a sexualidade de Judith, e até mesmo seu poder: não sem razão sua espada é cortada, e mal podemos ver a lâmina. Seu olhar não é o de uma sedutora, mas o de uma santa e justiceira.


(1598-99) Judith decapitando Holofernes - Caravaggio




   Se a Judith de Giorgione é a mais sugestiva e a que melhor a representa de acordo com seu arquétipo, a de Caravaggio foi a mais inovadora e ousada ao representar, pela primeira vez, o ato mesmo da decapitação - o gênio e a qualidade do chiroscuro de Caravaggio são inquestionáveis e já consagrados. Aqui o foco não é mais em Judith, mas no próprio ato teatral da decapitação, que é guiado pelos olhares de Judith e sua empregada; a disposição das figuras é quase equivalente.O gênio da pintura está não só no impacto da forma como a violência é mostrada, mas na expressões dos personagens - o horror de Holofernes é perfeitamente exposto; Judith, porém, retoma aqui a imagem de inocência e ingenuidade, expressando aversão ao ato, enquanto parece influenciada e guiada pela empregada, de aparência maléfica.


(1614) Judith decapitando Holofernes - Artemisia Gentileschi




   Enfim, Judith representada por uma mulher! Gentileschi retoma a cena violenta de Caravaggio, mas com uma outra interpretação. Aqui há um equilíbrio nos personagens e na cena, conforme exposto pela triangulação entre as três cabeças. Ao contrário da Judith de Caravaggio, aqui seu rosto é de pura determinação, e sua empregada aparece como uma simples cúmplice. Embora não tenha o poder expressivo de  Caravaggio, a interpretação precisa do arquétipo de Judith como uma mulher que não teme usar seu poder é devidamente utilizada, harmonizando-se com a maravilhosa triangulação proposta pela pintora.



(1901) Judith e a cabeça de Holofernes - Klimt





   Por último, uma adaptação mais moderna da personagem bíblica. O foco é todo em Judith, ainda mais que no quadro de Giorgione - mal podemos notar a cabeça decapitada. O quadro de Klimt não tem a beleza formal dos quadros tradicionais, mas é de forte poder expressivo - o olhar de Judith é de triunfo e de um prazer quase sexual. Somado a isso, os detalhes dourados da roupa e do fundo do quadro, típicos de seu simbolismo, contribuem à essa sensação de glória que a pintura passa. De fato, é um quadro sobre o triunfo feminino, indo além da própria Judith - se não é pela inscrição na moldura, mal perceberíamos tratar-se de uma representação dessa personagem. E creio que é isso que, expressivamente, todos as suas representações devem passar - o triunfo do poder feminino.

quinta-feira, 6 de julho de 2017

Jules Joseph Lefebvre - A morte de Príamo, Pandora e outras obras

   Não há muito o que se dizer de Lefebvre - apesar da vida longa (74 anos) produziu poucas obras, relativamente ao seu tempo de trabalho. Menor ainda foi o número de suas obras-primas; entre as que tive o prazer de contemplar, além de A morte de Príamo, apenas Pandora e Graziella, que seguem uma mesma estrutura, podem ser consideradas como absolutamente únicas e notáveis, não apenas em beleza, como também em simbolismo. Além delas, as poucas outras obras que chamam atenção não são muito originais - não só o tema, como a pose dos personagens tiveram origem em artistas anteriores. Mas há de se considerar que são belas cópias! Seguem algumas dessas obras que me chamaram atenção:




A morte de Príamo (1861)




   Uma de suas primeiras obras, com a qual ganhou o prestigioso Prix de Rome. Retrata a morte de Príamo, lendário rei de Troia. E merecidamente - uma maravilhosa pintura; a dramaticidade é retratada sem exageros. A iluminação no centro, para retratar os protagonistas da pintura, é impecável. É aquele tipo de pintura cheia de detalhes, na qual podemos passear com os olhos - cada personagem no fundo escuro, apesar de expressarem todos um pavor pela invasão em Troia, o expressam cada qual de forma única, dando individualidade aos personagens. Os detalhes mais aos fundos e do cenário em geral são ricos e claros. É tudo como uma fotografia perfeita, um conjunto de movimentos congelados, na qual Príamo e seu assassino expressam teatralmente seus destinos: o primeiro olha ao alto, de forma redentora à morte eminente; o segundo empunha sua espada com glória, ciente da fama que terá entre os gregos por matar o rei troiano. É assim, no fundo, uma pintura sobre destinos que se cruzam - poderia muito bem se chamar ruína e glória.


La Vérité (1870)



   Basta prestar bem atenção para perceber qual o parentesco desse quadro - a estátua da liberdade. Para quem sempre teve o fetiche de vê-la nua, eis aí. O primeiro modelo reduzido da estátua foi feita por um contemporâneo de Lefebvre, também francês, de onde provavelmente tirou sua influência. De qualquer forma, é também um belíssimo quadro - a verticalidade é perfeita para a apresentação, que chama todo o foco ao corpo da modelo. Lefebvre também fez outros quadros com a mesma proporção, mas não tão belos como a Vérité. A iluminação no corpo e a firmeza de sua coloração atraem logo a vista; sem dúvida é esse o atrativo formal da obra. Mas o atrativo simbólico está nessa espécie de lâmpada que é carregada, ocupando cerca de 1/3 da pintura - seu contraste com o fundo escuro transmite um simbolismo muito forte de algo que se ascende na escuridão e a ilumina - o próprio ideal da verdade que é proposto pelo pintor; e esse ideal se realiza, como dito, tanto na forma da modelo como no simbolismo da lâmpada.



(1874) Odalisque


Odalisque de Lefebvre

(1814) Grand Odalisque - Ingres

   A odalisca, enquanto tema artístico, é conhecida a todos os familiares com a história da arte. E qual o primeiro quadro vem à mente ao se tratar desse tema? Ora, a Grand Odalisque, de Ingres, feita em 1814. É claramente a inspiração desse quadro acima, que copiou a pose de costas da Odalisca. Fazendo uma comparação, a Grand Odalisque é claramente superior - principalmente nos traços que são característicos de Ingres, e no mínimo cuidado aos objetos que cercam a modelo. Comparando os cenários, o de Ingres é muito mais detalhado, ganhando também na força da coloração. Mas Lefebvre trabalhou melhor na iluminação da Odalisca, que se destaca no meio do cenário, enquanto na Odalisca de Ingres ela parece muito mais parte dele, do que algo distinto. A de Ingres também é claramente sexualizada, tanto no olhar, na pose, quanto nos seios quase à mostra. Talvez a de Lefebvre acabe por ser mais sedutora, justamente por se ocultar, nos levando à curiosidade de ver seu corpo e sua face. É essa questão sedutora, do ocultamento e do convite, a força de ambos os quadros. Cabe ao observador fazer sua escolha.


(1876) Maria Madalena em uma caverna

Madalena de Lefebvre

(1863) O nascimento de Vênus - Cabanel

    Quem iria imaginar, uma santa católica e a deusa do amor Afrodite, nuas e semelhantes em pose! Ambas também exploram a sexualidade da mulher, mas de forma muito mais explícita. Lefevbre mais uma vez demonstra melhor domínio da iluminação do quadro. É belíssimo em sua forma, mas de poucas ideias e expressividade - o cenário e a organização da pintura não impressionam. Já no nascimento de Vênus o conjunto é muito mais criativo - a forma como a deusa consegue se sobrepor na água, como se fosse uma superfície plana, é mágica e único. A vastidão do céu, em conjunto com seu azul e o azul do mar, dão um tom de leveza quase místico. E por fim, todo o conjunto de expressões - como cada anjo se comporta de maneira diferente, dando uma impressão de movimento; o olhar de Vênus quase fechado, demonstrando seu lento despertar. Tudo isso faz desse quadro uma obra-prima, ao contrário do primeiro, que é só mais um belo quadro.


(1877) Pandora e (1878) Graziella






   Pessoalmente, minhas favoritas, e até onde sei são marcas próprias de Lefebvre. O mito de Pandora é bem conhecido, mas esse quadro faz algo de diferente a esse mito. Tem um tom enigmático, distinto, que faz jus à grandeza de Pandora. Um de meus quadros prediletos - amo como a escuridão se alastra ao redor de Pandora, e seu olhar estranho, não-humano. A estrela sobre sua cabeça tem a mesma força simbólica da lâmpada carregada na Vérité. Mas em ambos os quadros, a beleza está na composição: uma mulher sentada num precipício, a olhar o vasto infinito. O segundo parece uma versão mais humana e realista do primeiro, tendo esse primeiro como objetivo resgatar o espírito mitológico e órfico dos gregos.


 Se te interessar, segue um link com 48 quadros do pintor: http://www.jules-joseph-lefebvre.org/

terça-feira, 4 de julho de 2017

Francisco Goya - Um olhar sobre as pinturas negras

   Toda arte é um reflexo do espírito do artista. Por isso, a arte é sempre reveladora do estado de ânimo mais profundo e interno de seu criador; isso é, se a arte for honesta e autônoma, tal como se espera de toda obra de arte. Há um fator de transparência nelas, que acaba por revelar algo do íntimo de seu autor, mesmo que, muitas vezes, seja despercebido e contra sua vontade. Essa questão da
Auto-retrato
transparência da arte muito diz sobre as famosas pinturas negras de Goya - não é preciso conhecer seu autor, ou debater a autenticidade da obra, quando essa revela por si própria o espírito do artista, seja qual for sua identidade ao certo.
   As pinturas negras revelam que seu autor foi um espírito perturbado, que não via mais o mundo da mesma forma. O mundo revela-se nelas como algo distorcido, que perdeu a cor e a sanidade. Revela alguém em declínio, e tal está de acordo com a situação de Goya em seus últimos anos de vida, quando pintou esse conjunto de obras. Quem as entende, certamente já passou por situações parecidas - o que acredito ser o caso da grande maioria. Mesmo que por curtos períodos de intensa ansiedade ou de desânimo; elas parecem, para mim, como pesadelos, que nada mais são que um conjunto de experiências reais que aparecem no sono de forma embaraçada e dolorosa. Em resumo, são como um filtro do mundo na mente de um artista que vive grandes aflitos.
   Ora, depois dessa descrição, fica claro que não se tratam de obras belas. Por que então continuam com estima, e ainda são debatidas e importantes no meio estético? Penso que justamente pela transparência que elas passam, em meio a um artista num estado único de espírito. Aí está a genialidade dessas obras - é raro um artista ir tão fundo em seu estado de espírito, e expô-lo com tanta sinceridade, transparência. Pois a impressão que elas passam é que seu criador vivia num mundo parecido - ele não experimentava mais o mundo da mesma forma que uma pessoa considerada saudável psicologicamente. E ele conseguiu expressar isso, mesmo com uma intenção de não expô-las ao público, conforme se acredita até então. Assim, por mais que não despertem em nós propriamente o prazer do belo, ainda assim despertam nosso interesse, por mostrarem-se como um choque ao convencional, à forma como costumamos experimentar e representar o mundo. De fato, as pinturas negras são um escárnio para com todo tipo de realismo, ou toda arte que privilegie a forma enquanto o belo. Aqui, a ênfase não é na forma, mas na expressão, no lugar de uma arte representativa e figurativa.
   Mas chega de lenga-lenga, e vamos às obras, para que cada um faça a interpretação que quiser delas. Consideram-se as pinturas negras como um total de 14 obras (embora uma à parte seja debatida como a 15°). Lembrando que os nomes das obras foram dadas posteriormente por um amigo pintor de Goya; as listo a seguir com breves comentários das impressões que algumas me passaram, e da interpretação que tenho delas - clique nelas para ampliar sua resolução.

1 - Saturno devorando a su hijo


   Comecemos pela mais conhecida, e a mais violenta das pinturas. Todas as outras seguem uma estrutura parecida - pouca iluminação, poucas cores, ausência de cenários e ar de obscuridade e insanidade. As cores mais evidentes são a do corpo mutilado e de seu sangue, dando uma impressão de desgosto e repulsa - a não ser, talvez, que seja um canibal. Por ser uma imagem de Saturno, é evidente ser essa uma representação do tempo em seu aspecto mais violento e hostil. Nunca antes o tempo foi representado de forma tão carnal - Goya lançou mão de todo idealismo e expressou o tempo na forma mesma como ele estava experimentando. E essa forma era justamente com essa violência - a obra reflete um artista que sente-se não somente refém do tempo, impotente perante ele, mas também violentado por esse tempo. Ele está sensível aos aspectos mais primitivos da passagem temporal.

2 - Judith y Holofernes





    Judith decapitando Holofernes é um clássico pitoresco; na maioria das representações, a violência é visível, com a presença da cabeça decapitada e de seu sangue. Curiosamente, não é o que ocorre na pintura de Goya - é como se essa clássica representação não representasse, para o pintor, uma hostilidade, tal qual ocorre na pintura anterior. Há a evitação de qualquer elemento agressivo ou grosseiro - mal podemos notar a presença de Holofernes, e a adaga de Judith mais parece um pedaço de pau. Portanto, para o pintor, essa cena não representa em si algo de violento, tendo em vista que a ênfase não está na decapitação. No mundo das pinturas negras, talvez seja uma situação banal; o rosto de Judith, como praticamente todos os rostos das pinturas, é deformado e não parece expressar nada compreensível - a marca da loucura.


 3 - Aquelarre ou El gran cabrón






   Para os historiadores de arte em geral, essa cena representa um conjunto de bruxas na presença do Diabo em forma de bode. Também é considerado um escárnio com a punição por bruxaria existido ainda na época; a deformação dos rostos é aqui exposto da forma mais evidente, dando uma impressão dessas bruxas passarem por um misto de horror e insanidade. De fato, os únicos rostos com um mínimo de coerência é do bode e da dama de preto sentada à direita - são também os personagens mais evidentes. Talvez por serem os únicos que realmente tem consciência do que se passa - a dama pode ser a responsável pela comunicação com o bode, ao contrário de uma das interpretações de que ela seria uma iniciada, o que é contraditório com a calma que seu rosto transparece, em oposição à confusão no rosto das bruxas.



 4 - La romería de San Isidro





   Essa pintura e a sua posterior representam uma peregrinação à um local perto da casa em que Goya pintou suas obras. A deformação dos rostos também é gritante, dessa vez numa multidão que se prolonga rumo à paisagem sombria no fundo.
 
 5 - Peregrinación a la fuente de San Isidro







 6 - Doña Leocadia





   Esse é um caso curioso entre as pinturas - de todos os rostos, é o único que não se apresenta deformado, embora ainda inexpressivo. A inexpressividade, junto à vestimenta de luto, dão prosseguimento ao tom sombrio da série de pinturas. Ainda há melancolia, portanto, mas a forma mais segura da mulher dá um tom de alívio à série. Provavelmente era alguém significante para o pintor que, da mesma forma na pintura, aliviava sua vida obscura. Especula-se que era Leocadia, uma empregada de Goya 35 anos mais jovem, com a qual pode ter tido um caso.



 7 - Dos viejos


    O rosto à direita é um dos mais deformados, de aparência demoníaca; talvez represente más vozes que habitam na consciência do velho, as quais ele, aprisionado em si, não consegue livrar-se. Outros interpretam que pode relacionar-se com seu problema auditivo.

 8 - Hombres leyendo



   Acredita-se que representa políticos lendo e comentando um artigo do jornal sobre eles mesmos.



9 - Dos mujeres riéndose de un hombre


   Sim, elas estão rindo de um homem se masturbando. É, esquisito...
 

 10 - Duelo a garrotazos





    De todas é a mais colorida e com um cenário mais detalhado. Repare como em todas as pinturas, principalmente as horizontais, as figuras mais evidentes nunca estão no centro, mas nos cantos - outro traço da inconvencionalidade da série.

 11 - Átropos



    
    Átropos representa as moiras, as três deusas do destino na mitologia grega.


12 - Asmodea / Visión fantástica


   Os soldados à direita são franceses, e a população em fuga acredita-se ser de refugiados da guerra anterior com a França.





13 - Dos viejos comiendo sopa

  
   Apesar de representar dois velhos, apenas o primeiro tem ainda uma aparência viva, enquanto o segundo parece cadavérico e decomposto. É provável que represente um mesmo indivíduo - primeiro na velhice, e logo depois morto, mostrando a percepção temporal de alguém que está próximo à morte.

 14 - El Perro




   A última é a mais simples e mais enigmática - apenas a cabeça de um cachorro que parece soterrado por uma espécie de areia movediça; a última coisa que lhe resta é olhar ao céu vazio. O mais interessante aqui é o uso desse vazio, que ocupa mais da metade da pintura - um vazio amarelado, quase sem cor, tal qual ocorre nas outras pinturas da série. Mas aqui esse vazio ganha um sentido a partir do olhar do cachorro, que nos convida a também olhar esse vazio. É como o olhar de um homem para o céu infinito, mas no caso da pintura, a partir de uma ótica obscura e de aflito. Uma obra singular na história da arte - uma das poucas que deu, ao espaço vazio da pintura, um sentido.

O Rap e o triunfo da palavra sobre a música

   A música está anestesiada. Mas o que é, por acaso, a música? Entendo essa arte como a expressão da mais alta potência melódica. É através...